Na vanguarda digital

14 de setembro de 2017

Matéria publicada no site da Fundação Sirotsky Sobrinho, instituição que apoia ações inovadoras para a formação de jovens, mostra a experiência do Centro Educacional Pioneiro na cultura digital e na produção de materiais livres. Débora Sebriam, coordenadora de tecnologia do PIO, fala sobre iniciativas inéditas da escola, como  a formação de professores e a construção do repositório escolar com conteúdos abertos.

Por Fundação Maurício Sirotsky

Conhecimento horizontal e acessível para democratizar a educação

Quando uma das características mais incríveis da internet se popularizou – a de permitir acesso gratuito a conteúdos -, buscar textos, vídeos e outros materiais para serem utilizados em sala de aula por educadores e estudantes virou uma prática comum. Porém, nem tudo na rede pode ser utilizado para esse fim, mesmo que tenha função educacional. Se a informação ainda é motivo de surpresa, é preciso ampliar a discussão sobre os Recursos Educacionais Abertos (REAs), tema crescente na Educação e fundamental para universalizar o conhecimento por meio da colaboração e do compartilhamento digital.

A definição para o termo Recursos Educacionais Abertos foi instituída pela Unesco em 2002 no primeiro fórum global sobre o tema. Nele, foi definido que REA são materiais sob domínio público ou licenciados de maneira flexível, permitindo que sejam utilizados, distribuídos ou adaptados por terceiros. Isso divide em dois os tipos de conteúdos disponíveis na internet: gratuitos e abertos, e é aqui que começa a principal confusão.

Existe um equívoco comum que é pressupor que se o conteúdo está lá disponível de graça na web pode ser considerado “conteúdo aberto”. Ou seja, pode ser copiado, alterado, distribuído em uma sala de aula ou copiado. Porém, isso é proibido por lei.

Os conteúdos de acesso gratuito, a maioria dos conteúdos online, tem seu direito patrimonial fechado com licenças restritivas que permitem apenas consulta. Na prática, o usuário somente poderá utilizar aquele conteúdo na exata forma em que estiver disponível, como lê-lo na tela de seu computador ou dispositivo móvel. Não é permitido que seu conteúdo seja baixado, traduzido, adaptado ou modificado, ou seja, nenhum outro direito de uso e recombinação é dado ao usuário do conteúdo gratuito.

Por sua vez, recursos educacionais abertos são materiais de “acesso aberto” disponibilizados por licenças abertas menos restritivas, que permitem diversos usos. Essas licenças, seis ao todo, são fornecidas de forma rápida e simples no site da Creative Commons, uma organização sem fins lucrativos que permite o compartilhamento e uso da criatividade e do conhecimento através de instrumentos jurídicos gratuitos.

Nesse caso, o autor ou o detentor dos respectivos direitos autorais sobre aquele material compartilha parte de seus direitos patrimoniais com a sociedade, permitindo livremente seu uso, recombinação e redistribuição. Com isso, é possível usar livros, módulos, trechos de cursos, teses, jogos, mídia digital ou analógica, inclusive fazendo cópias na íntegra ou mudando pedaços para adaptar os conteúdos à realidade local em que os materiais forem usados.

“É um tema relativamente novo, mas um trabalho de muitos anos. É um movimento de escala global, mas no Brasil ainda são poucas as pessoas que entendem e conversam sobre isso. Seu uso ainda é pequeno por aqui. Embora cada vez mais pessoas já tenham ouvido falar, muitas simplesmente não conhecem”, diz o pesquisador Tel Amiel, coordenador da Cátedra UNESCO de Educação Aberta.

Educação aberta: colaboração e interatividade
Os REA fazem parte de um movimento mais abrangente pela educação mais acessível por meio da colaboração e da interatividade, o de educação aberta. A concepção é que todos devem ter a liberdade de usar, personalizar, melhorar e redistribuir ferramentas educativas, sem restrições, ampliando, assim, o conhecimento. Para especialistas, a contribuição principal dos REA é garantir maior acesso a recursos didáticos e às infinitas possibilidades das novas tecnologias.

O empenho de Priscila Gonsales, diretora executiva do Instituto Educadigital (IED), é de sensibilizar a sociedade para o assunto e disseminar suas potencialidades. A ONG luta pela causa da educação aberta desde 2010.

“Com recursos abertos, educadores podem usar um material que está disponível com um outro e combinar esses dois para um uso específico de acordo com as necessidades, com a identidade de uma região e de uma cidade, ou ainda valorizar um aspecto. Mas tudo isso só só é possível se esse recurso de fato está aberto, se ele permite que eu faça este tipo de adaptação”, enfatiza.

O professor Paulo Francisco Slomp, do departamento de Psicologia da Educação da UFRGS, acompanha esse processo desde os anos 80, quando os movimentos pelo software livre e código aberto inauguraram esse debate.

“Os REAs são, de certa maneira, derivados das licenças que caracterizam o software livre, que surgiu em 1985. Quando produzido, um software livre tem todos os detalhes de seu funcionamento, operacionalidade e distribuição abertos. Isso é conhecimento humano e à medida que é publicado passa a ser conhecimento da humanidade. Eu defendo o conhecimento aberto e compartilhado, trabalho para que este fique disponível sempre que possível, e sem custo”, explica o professor.

Em 2016, Slomp e o orientando André Ferreira Machado criaram a Tabela Dinâmica Software Educacional Livre para Dispositivos Móveis, destinada a professores da Educação Básica. Essa tabela é resultado da coleta e sistematização de dados de mais de 300 aplicativos educacionais para celulares e tablets Android. Seu diferencial está no uso da linguagem HTML, que permite que possa ser consultada e organizada de forma simples para os usuários.

“A ideia surgiu para permitir que os conteúdos fossem encontrados por meio de um clique. Existem centenas de tabelas, mas em dados mais difíceis de serem consultados. Vamos supor que um professor de geografia queira procurar um software, ele pode clicar na aba do nível de escolaridade, ou da matéria, e achar os aplicativos com agilidade e rapidez”, diz.

Educador como produtor de conteúdo
Os especialistas que atuam na difusão dos Recursos Educacionais Abertos pelo Brasil reforçam outro aspecto: o da criação autoral de conteúdos. Eles defendem que o professor, alunos e até gestores escolares devem se tornar autores de fato e não apenas consumidores unilaterais de materiais.

“Os professores criam tanta coisa, só falta se apropriar do que já é feito e criar a dinâmica em sala de aula. Os adultos têm muita dificuldade de entender esses conceitos e de saber como trabalhá-los, mas os jovens aprendem rapidamente”, diz Débora Sebriam, Mestre em Engenharia de Mídias para a Educação, coordenadora de projetos do Instituto Educadigital e coordenadora de Tecnologia Educacional no Centro Educacional Pioneiro, Escola de Educação Infantil ao Ensino Médio, em São Paulo.

Neste centro, ela coordenou iniciativas inéditas nos últimos 6 anos. Em 2011, liderou a primeira formação de professores e acompanhou o desenvolvimento de um livro de contos, disponibilizado com licenças abertas. Em 2012, ajudou a construir o terceiro repositório escolar com conteúdos abertos no Brasil, acesse aqui, – os primeiros foram dos colégios Dante Alighieri e Visconde de Porto Seguro, ambos de São Paulo.

“No caso específico do Centro Educacional Pioneiro, não é uma política educacional da escola, mas trazemos essa discussão para o projeto pedagógico. Atuamos em parceria com professores para que eles planejem conteúdos abertos nos trabalhos, que tenham licenças e que possamos compartilhar nos repositórios. Essa filosofia de compartilhamento de informação permeia tudo que fazemos, e tentamos seguir essa premissa, mesmo que o grupo não aceite. Porque não é obrigatório compartilhar, é apenas um convite. Mas eles costumam aceitar”, complementa.

Avanços lentos e graduais no Brasil
Apesar de incipiente, especialistas comemoram o impulso do movimento no Brasil. Além da realização do 2º Congresso Global REA em setembro, na Eslovênia, que contará com a participação de especialistas brasileiros, o ano marca um avanço nas políticas públicas. Em junho, o MEC lançou minuta do edital do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) para o ano de 2019 que traz, pela primeira vez, uma cláusula pedindo licença aberta no material didático do professor que será adquirido por compra pública e distribuído a escolas de Educação Infantil e de Ensino Fundamental I. O PNLD é o maior programa de compra e distribuição de livros didáticos da América Latina e do mundo. Os valores envolvidos ultrapassam R$ 1 bilhão de reais por ano.

“Se você imaginar que em 2008 eram 48 pessoas debatendo o tema no Brasil, é um grande avanço. É um tema cada vez mais comentado, principalmente, nas mídias especializadas em educação. Porém, apesar de estar crescendo, o movimento ainda não ganhou a capilaridade que se espera por falta de conhecimento. Muitos educadores nem sempre pensam em REA no planejamento de seus conteúdos, onde vão colocar os materiais produzidos, não estimulam a produção, poucas escolas têm repositórios de REA. Hoje, a maioria ainda fica restrita a universidades”, analisa Débora.

Para Amiel, um dos maiores empecilhos à popularização dos REAs é a barreira da língua. Segundo ele, o fato de a maior parte dos conteúdos desse tipo serem em inglês ainda afasta educadores.

“No cenário global, a diversidade é muito grande, mas dominado pelo inglês. É muito mais fácil achar REAs em inglês do que em português. Em português, apesar da expressividade e de ter bons e grandes repositórios, ainda é um cenário complicado. Temos bons, mas poucos exemplos”, diz o especialista que coordena o conteúdo brasileiro em um dos maiores repositórios de conteúdos exclusivos REA no mundo, o OER World Map.

Qualidade dos REA ainda é questionada
Se os avanços são percebidos e comemorados, a resistência a conteúdos REA ainda é uma barreira real. As principais dúvidas figuram entre “são conteúdos de qualidade?”, “O educador pode confiar nesses conteúdos?”. O professor Tel Amiel responde também com uma pergunta.

“Como que se sabe a qualidade de qualquer material que se põe as mãos? Quem garante que um livro é mais confiável ou tem um material de mais qualidade que um conteúdo REA? Ninguém! Essa ainda é uma das maiores preocupações para quem está entrando nesse assunto”, afirma.

Para diminuir esse receio, ele acrescenta que várias organizações fazem curadoria desses conteúdos, como universidades que criam coleções, referenciando materiais de qualidade e indicando seu uso.

“Descentralizar é dar autoridade a outros membros e isso é criar oportunidades. Não precisamos centralizar essa função apenas no MEC ou em algumas editoras”, defende.

Outra dificuldade relatada por especialistas se refere à identificação de um conteúdo aberto. Na teoria, todo o site deve conter em seus termos de uso a política de privacidade ou deixar as licenças e condições de uso explícitas em algum local da página. Se a licença não estiver declarada, ainda que o conteúdo esteja aberto, por lei, parte-se do pressuposto que está protegido, ou seja, não pode ser apropriado.

Nem sempre essa busca é clara. Por isso, há os repositórios – endereços eletrônicos que concentram conteúdos exclusivos REA. Mas ainda neles a confusão é grande e muitos têm materiais fechados, causando confusão no usuário.

Para ajudar nesse trabalho de formiguinha, o Instituto EducaDigital lidera a iniciativa de financiamento coletivo para tirar do papel o ReliA, repositório exclusivo de REAs. O ReliA se propõe a ser uma plataforma que indica e referencia recursos educacionais com licenças abertas. Disponível no site Catarse, a iniciativa arrecadou R$ 4 mil em 193 dias. A meta é R$ 15 mil.

De acordo com os especialistas consultados, selecionar bons repositórios (confira sugestões abaixo) é o início para quem pretende trabalhar com os REAs.

“Normalmente, é um emaranhado de informações. As pessoas leigas que não tem conhecimento enfrentam muita dificuldade de achar as licenças do autor. Isso quando estão disponíveis, pois há casos em que nem isso é feito, e dificulta o uso. É um trabalho exaustivo e cansativo de descobrir o que é livre ou não e catalogar, mas vale a pena”, afirma Slomp.

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